Minha gratidão às acadêmicas e acadêmicos que com
sua generosidade me elegeram. Sinto-me honrado em juntar-me aos membros
desta instituição que, ao longo de cento e vinte anos, vem consolidando entre
suas melhores tradições a da criatividade e da inovação. Expoentes dos mais
variados campos têm demonstrado nesta Academia sem academicismo, independente e
fiadora de independência, seu compromisso com a palavra.
Nem todos os que me precederam na Cadeira 22 tiveram na
literatura o reconhecimento principal de seu trabalho. Mas todos foram homens
de cultura que externaram seu amor pelas letras.
O patrono, José Bonifácio, o Moço, renomado professor da
Faculdade de Direito do Recife e da Faculdade de Direito de São Paulo, foi
expressão romântica do que havia de mais avançado em seu tempo.
Em meados do século dezenove, escrevia poemas de amor não
correspondido, de nostalgia da infância e de sonhos de juventude; ao mesmo
tempo, de cunho social, nos quais avulta o tema da escravidão.
Mas foi no Parlamento como orador que mais se destacou, na
defesa das causas abolicionista e da ampliação do sufrágio eleitoral.
Luís Viana Filho, terceiro ocupante da cadeira 22, narra a
impressão deixada por esse sobrinho do Patriarca da Independência em Medeiros e
Albuquerque, o fundador da cadeira, num dia de 1886. Bonifácio, no Senado,
enlevava a plateia com a defesa do abolicionismo. Quando terminou, a palidez de
seu rosto não ofuscava o “olhar rutilante”. Doente, viera contra recomendação
médica e dias depois morreria. O episódio faria Machado de Assis, em versos por
ocasião de sua morte, dizer que Bonifácio caíra “não ao peso dos anos, mas ao
peso do... amor à ... pátria amada”.
Luís Viana Filho atribui a escolha do patrono da cadeira 22 à
impressão deixada em Medeiros e Albuquerque por essa figura do cidadão
indiferente ao perigo e fiel a seu ideal.
De Medeiros se pode discordar, como muitos o fizeram em seu
tempo. Porém ninguém dirá que esse pernambucano de uma inteligência aguda,
irreverente e destemida não primava pelo espírito livre que deve cercar o
trabalho literário. Exerceu altos cargos públicos, foi parlamentar e jornalista
de destaque. Publicou ficção, poesia e crítica literária, além de numerosos
discursos e conferências. No ensaio deixou a marca de uma escrita límpida, enérgica
e muitas vezes irônica.
Prova da diversidade desta Academia, aqui conviveu com
monarquistas, sendo ativista republicano. Com religiosos, fazendo a defesa do
ateísmo. Com presidencialistas, advogando pelo parlamentarismo.
Em polêmica de 1928, critica o pressuposto de um autor
inteligente para o mundo – tema ainda em voga entre criacionistas. Argumenta
que, sendo Deus perfeito e completo, não teria razão para criar nada. E faz a
mesma pergunta que li em Richard Dawkins: “quem criou Deus?”
Com vocação de inovador, se dependesse dele o português do
Brasil teria abraçado ortografia exclusivamente fonética. Foi dos primeiros a
divulgar Freud e a cultivar a literatura policial no Brasil, com o livro de
contos Se
eu fosse Sherlock Holmes, de 1932, onde cita Conan Doyle e
Edgar Allan Poe.
Inovou igualmente ao propor em 1910 o uso na Academia do belo
traje cerimonial, que, segundo se chegou a crer, poderia ter concorrido para
seus galanteios parisienses dois anos depois.
Contudo, parece que não foi o fardão que lhe serviu para as
conquistas amorosas, e sim a velha farda de coronel da Guarda Nacional
francesa. Na parte de suas memórias relativa aos amores, conta que na Cidade
Luz, durante a guerra, conseguiu licença para engalanar-se com a prestigiosa
farda, de cinco galões dourados.
O amor e o sexo já habitavam sua poesia. Ouçamos seu testemunho:
“Moço, escrevi as Canções da Decadência e
os Pecados,
livros em que há numerosos versos de uma sensualidade extrema, que frisa, às
vezes, a obscenidade.” “Mas...”, confessará, “tudo aí era literatura.”
E, acrescento, grande literatura para a crítica de seu tempo, o
que não foi confirmado com o decorrer dos anos. Embora Canções
da decadência ainda esteja apontado como o livro que
introduziu em 1889 o simbolismo no Brasil, poucos reconheceriam nele verdadeira
afinidade espiritual com o movimento. Indicação de que a imortalidade nem
sempre é condescendente.
Talvez mais pelos ataques à igreja do que pela ousadia sexual,
suas memórias publicadas postumamente, Quando eu era vivo, ainda não
sejam recomendáveis aos conventos de freiras, como observou. Quiçá haja
semelhante ousadia atualmente na internet, e não com bilhetinhos bem estudados
como os que o sedutor simpático deixava cair sobre o colo da mulher com quem
trocava um olhar. A diferença básica é que, com uma nova consciência sobre as
relações de gênero, a moral dos tempos não é mais nem menos rigorosa; é de
outro rigor. Suas páginas sinceras e espirituosas de “Don Juan burocrático” – a
definição é dele – revelam um trabalho metódico, ao qual não faltam
estatísticas (quatrocentas e tantas mulheres num só ano).
Este colecionador frenético descobria gostos ou desejos de suas
“caças” (termo dele) a partir das informações de um amigo detetive. Elas, “as
pobrezinhas” – ele quem diz --, ficavam impressionadas, algo semelhante às
cenas de Todos
Dizem Eu Te Amo em que o personagem de Woody Allen monta em
Veneza sua estratégia de sedução com o conhecimento de detalhes sobre a
personagem de Julia Roberts. As táticas são muitas, e a elas não faltou o
hipnotismo, tema caro a Medeiros e de livro que publicou em 1921.
Parecia ser rápido em tudo, da cama à escrivaninha, pois foi
nesse mesmo período parisiense que publicou não só muitos artigos, mas também
seu livro O Regime Presidencial no Brasil. Lançado em
1914, foi reeditado em 1932 com o título de Parlamentarismo e Presidencialismo no
Brasil. Para ele, no regime presidencialista, se um presidente
chegasse a ser processado pelo Congresso, não se lhe poderia infligir senão a
pena da perda do cargo. “Assim, depois de... laborioso processo”,
perturbador dos negócios públicos, “chegar-se-ia apenas ao que chega o
regime parlamentar com um voto da Câmara.” “O regime presidencial”, além disso,
teria trazido “uma corrupção moral inominável”. Seria “o regime das adesões e
traições”, pelo interesse do parlamentar em se associar a um poder de
duração fixa.
Crítico severo de Dom Pedro II e autor da letra do Hino da
Proclamação da República, não hesita em elogiar o regime parlamentar do Império
em defesa deste raciocínio. “No tempo do Império,” diz, “por ocasião de
discutir-se a Abolição, houve o caso de um deputado mudar de partido. Um só! Em
torno disso se fez um escândalo enorme.”
Argumentos defensáveis – convenhamos --, desde que consigamos
abstrair-lhes questões conjunturais, interesses partidários e a qualidade dos
parlamentos e dos presidentes em épocas específicas.
Evidentemente, o Brasil atravessa uma crise das mais graves e
das mais sérias. O aspecto mais impressionante da situação é constituído pelas
dificuldades econômicas e financeiras, resultado de um mal mais grave. As
classes dirigentes e as classes médias não tiveram o preparo necessário para
resolver os nossos problemas sociais, administrativos ou técnicos. Ao
lembrarmos que os interesses ocasionais são, o mais das vezes, interesses
pessoais, compreendemos facilmente como, aos poucos, se instalou o sistema
essencialmente corruptor adotado hoje, por toda parte.
O que acabo de ler sobre a crise grave e séria não são palavras
minhas nem de Medeiros e Albuquerque. São de seu sucessor na cadeira 22,
o médico e cientista de projeção internacional Miguel Osório de Almeida.
Pronunciadas em 1925, foram recolhidas em 1931 no livro A
Vulgarização do saber. Nele Miguel Osório defende a “utilidade de
por o grande público a par do movimento científico”, o que ele inaugurava no
Brasil.
Nesse livro, um dos textos ilustrativos de sua sensibilidade
para a dimensão humanista no tratamento dos temas científicos é o que tem por
título “A necessidade de esquecer.” É possível traçar um paralelo entre esse
ensaio e o conto “Funes, o Memorioso” de Borges. Para o autor
argentino como para Miguel Osório, a memória completa é um obstáculo ao
pensamento.
Os comentários de Miguel Osório poderiam na atualidade se aplicar
à memória e à inteligência artificiais. Com a inundação de informações, são
indispensáveis funções cada vez mais seletivas e o “poder de discernimento”. Na
experiência científica -- dizia ele --, e em particular nas pesquisas que
envolvem as memórias artificiais e as redes informatizadas de comunicação --
podemos dizer hoje --, o estudante se habitua a ver quais os pontos que – cito
Miguel Osório -- “poderão ser esquecidos sem grandes prejuízos, porque
ele saberá achá-los novamente quando deles necessitar.”
Seu arrazoado não seria contrário ao trabalho de arqueólogo
próprio ao escritor que escava o que fora recalcado pelo tempo. A literatura
poderá dar atenção, não ao acabado, mas ao inacabado ou parcial; não ao
evidente e conhecido, mas ao silenciado, escondido ou ausente. Através da busca
de um sentido a um só tempo preciso e incomum para as palavras, o escritor pode
trazer à luz o que estava obscuro. O termo grego Aletheia, que, numa de suas
acepções, poderia ser entendido como “verdade”, é a negação de Lethe (esquecimento).
O ensaio de Miguel Osório não é um manifesto por este
esquecimento. É, sim, um libelo pelo juízo autônomo. Por isso não surpreende
que se encaminhe para uma discussão sobre literatura. O autor batia-se com boas
razões contra futuristas e passadistas. “Que resta, então?” se pergunta.
“Restam”, responde com acerto, “os que são, eles próprios, homens conscientes
de si mesmos, espíritos livres, que não admitem escola” e “procuram, em esforço
penoso”, descobrir “o mundo que lhes é próprio.”
À época de A Vulgarização do Saber, Miguel
Osório de Almeida já havia publicado outro livro de ensaios, Homens
e Coisas de Ciência. Pensou em lançar os novos ensaios como “parte
dois” deste último livro, de 1925, repetindo seu título. Não o fez por se dar
conta de que agora passaria a tratar não só de homens. Um dos artigos até mesmo
se intitulava: “As mulheres na ciência.”
O ensaio sobre Sophia Kavalewsky é também sobre literatura.
Baseia-se em parte nas Recordações de Infância dessa
matemática russa publicadas inicialmente como romance, com o próprio nome de
Sophia modificado e o título de As irmãs Rajewsky. As
primeiras “impressões sentimentais” de Sophia têm a ver com ninguém menos que
Dostoievsky. Então diretor do jornal A Época, ele publica Aniúta,
irmã de Sophia que procura se firmar como escritora. As duas e a mãe
viajam a São Petersburgo. Ali, quando Sophia ouve a declaração de amor que
Dostoievsky faz a Aniúta, sente-se desamparada, mesmo que a irmã não
corresponda aos sentimentos do escritor. E, então, com 13 anos, toma a
consciência de que o amara. Mais tarde, na Suécia, cultivaria a literatura ao
lado dos trabalhos matemáticos. De vida amorosa tumultuada, seus últimos tempos
foram de desilusão, como ocorrerá com as Almas sem abrigo do
romance que Miguel Osório escrevia à época do lançamento de A
vulgarização do saber e que viria a ser publicado dois anos
depois.
Referindo-se a esse romance em seu discurso de posse na Academia
em 1935, Miguel Osório explica que, cito: “enquanto no laboratório passava
horas fazendo medidas rigorosas e complexas, … em casa deixava correr a pena em
pálidas tentativas de exprimir as angústias de algumas almas sem abrigo. Quando
tudo acabou, aos fisiologistas apresentei uma teoria matemática e
físico-química da excitabilidade, aos amigos mostrei duas ou três centenas de
páginas; à falta de melhor mereceriam elas o título de romance.” Fim de
citação.
E se pergunta a que deve a honra de ocupar um lugar na Academia:
“se ao romance que se encontra em toda obra de ciência, mesmo na mais severa e
árida, se à ciência e experiência que se acham em todo romance ou obra de
imaginação.”
Em seu discurso de posse como Presidente de outra Academia, a
Academia Brasileira de Ciências, em 1929, destaca -- como Carlos, o personagem
central de seu romance -- os obstáculos encontrados pelos que se dedicam à
ciência pura. Carlos é matemático, e, como para Sophia, a literatura desempenha
papel crucial em sua vida: desenvolve nele -- esclarece o narrador -- “o
espírito crítico”, acirra seu talento e seus sentimentos, mas “não poucos
conflitos nasceram desse estado de espírito”. Miguel Osório mostra, assim,
que ela, a literatura, não é feita para apaziguar o espírito, mas para
aguçá-lo. Não é feita – creio eu -- para opinar, expor demonstrações ou
resolver problemas, o que cabe melhor noutras formas de expressão.
Luís Viana Filho também se dedicou à narrativa e à construção de
personagens. Como o patrono da cadeira, esse político que veio a ocupar o
governo da Bahia e a presidência do Senado, foi sensível à questão social e
particularmente à situação do negro, havendo publicado em 1946 O
Negro na Bahia, Um ensaio clássico sobre a escravidão. Mas, como
contribuição intelectual, notabilizou-se como biógrafo.
Foram seis as biografias com títulos que indicavam o foco na
“vida” dos biografados: por ordem cronológica, entre 1941 e 1984, A
vida de Rui Barbosa, A vida de Joaquim Nabuco, do
Barão do Rio Branco, de Machado de Assis, de José de Alencar e de Eça de
Queirós.
O método de Luís Viana Filho é coerente com seu livro A
Verdade na Biografia, de 1945. Nele discute as relações entre o
romance, a biografia e a história. É inegável – penso -- a importância do
personagem e de sua biografia no romance. São o ponto de partida de muitos
escritores. É possível escrever romances fortes sem enredo. Mas serão obras
frágeis as que não têm personagens marcantes.
Luís Viana Filho pondera, de forma apropriada, que “o biógrafo,
a exemplo do historiador, e ao contrário do romancista”, deve “ter sempre os
movimentos limitados pela preocupação da verdade, da exatidão e da
justiça.” Entretanto, a biografia estaria passando a usar elementos
frequentes no romance, embora não exclusivos dele: “a graça, a leveza, a
elegância, a maneira de apresentar o assunto, atraindo o leitor para o
desdobramento da narrativa.”
São observações que me convidam a acrescentar comentário sobre a
relação do romance com a verdade e a história. Os romancistas podem alienar a
verdade em troca de uma boa frase quando esta revela a verdade mais profunda da
própria ficção. Se o poeta é um fingidor, imagine o ficcionista! Embora nesse
trabalho de invenção possam ser incluídos registros e documentos, isso não é o
cerne da obra de ficção. Seu compromisso não é com a conjuntura, dinâmica pela
natureza; nem com a verdade factual, mutável com o surgimento de novas
informações. É com a história não oficial, alternativa ou subterrânea e deve ir
além da verdade e da realidade, sob pena de perder sua dimensão de fantasia,
que traz em si forma peculiar de transmissão de conhecimento. Dois e dois nem
sempre são quatro e não só por formarem o número da cadeira que comento.
O romance não tem necessariamente qualidades morais. E, para
Luís Viana Filho, a biografia moderna ou romanceada, que ele pratica, não
pretende tampouco “realizar obra de moral”. A sua finalidade seria proporcionar
um retrato total do biografado em suas contradições e complexidade, sem se
preocupar “com o resultado a que poderá chegar”. O que interessa é a sua
humanidade. “E, porventura, não será essa ´humanidade´... o que busca fixar a
biografia moderna?” Ele pergunta. Não é esse também, digo, o papel da ficção que
ambicione ser mais que passatempo ou entretenimento?
Outro traço frisado por Luís Viana Filho é que “o autor estará
sempre presente” na biografia, pois há “maneiras diferentes por que cada um de
nós apreende um fato, ou julga certa individualidade.” Não posso negar que
disso não escaparia sequer quem discursasse sobre seus antecessores numa
cadeira da Academia. No caso do romance, mesmo quando o autor concebe, como
julgo que deve ser, narradores diferentes de si; procura se distanciar de seu
objeto; quando seus personagens não são unidimensionais e a narrativa abre
perspectivas múltiplas e mesmo contrárias, a fabulação ou o mero recorte feito
da realidade revelarão um ponto de vista da ficção.
A maneira como o biógrafo
realizará sua biografia, conclui Luís Viana Filho, “eis a sua arte”.
Se a questão estética é fundamental para o poeta, para o
romancista, assim como o foi para o biógrafo Luís Viana Filho, não será menos
para o cirurgião plástico. Durante a adolescência, Ivo Pitanguy sentia que seu
caminho seria possivelmente a arte e a poesia. Não se enganou: sua vida foi um
longo poema narrativo.
Em seu discurso de posse nesta Academia declara “só ser possível
atingir a verdade a partir do belo”. Segundo diz em seu último livro de
memórias, Viver vale a pena, o belo forma uma
trindade “junto com o bem e a verdade”. Cita o Fedro, de Platão: “em todas
as coisas a medida e a proporção constituem a beleza e a virtude”. E arremata:
“o belo é associado ao bem e ao que é bom”.
Pitanguy me dá, assim, a oportunidade de encerrar
levantando a questão da forma, que nunca é forma sozinha, pois não está
dissociada de intenção e conteúdo. Esteta, não se fixou em padrões de beleza,
nem jamais acreditou que a beleza se esgotasse nela mesma. Sustenta que “o que
há de mais extraordinário e belo no ser humano... é sua diversidade...
estética.” Na sua visão, aprimorar, como um escultor, as formas do corpo serve
ao propósito de aliviar o sofrimento, a vergonha e a sensação de incômodo,
qualquer que seja a classe social dos pacientes; acima de tudo, de “devolver
dignidade”.
O tema da beleza o conduziu às artes em geral, nas quais navegou
com conhecimento. Sua intimidade com as artes plásticas, da Renascença ao
contemporâneo, o levou a presidir o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro entre
1974 e 1985.
Estive com ele uma única vez, tempo suficiente para comprovar
sua conhecida afabilidade e seu gosto pela literatura. Recitava nos originais
em francês e alemão passagens de As Flores do Mal e do Fausto,
entre tantos outros textos de uma longa lista de autores preferidos. É
expressão de sua sensibilidade e de sua paixão pelas letras, que, quando
conheceu sua mulher, Marilu, ela o tenha surpreendido, segundo afirma,
“não só por sua beleza”, “mas por seu interesse em poesia e literatura”.
Disse que sua vida é um longo poema narrativo. Corrijo: daria um
filme.
Talvez filme inspirado em histórias que ele mesmo contava, pois
era também contador de histórias – e dos bons! Num dos começos possíveis a
câmera foca no garoto de seis anos enrolado numa jiboia. Falo daquela jiboia
que o encarava numa estrada de terra nos limites da cidade das suas Minas
Gerais. Chiou atrás dele quando ele tentou acelerar o passo e finalmente tocou
seus sapatos. Por instinto, Pitanguy esticou o braço e fez carinho na cabeça da
cobra. Ela estremeceu, porque, conta ele, “em toda sua existência selvagem
provavelmente jamais fora alvo de uma demonstração de afeto”. A cobra o seguiu,
tornaram-se amigos e essa amizade lhe serviu até para que ele pudesse se
acomodar com o máximo conforto no bonde superlotado. Talvez na sua compreensão
dos animais estivesse o germe de seu futuro projeto de preservação da floresta
tropical e da criação de um santuário de biodiversidade na sua Ilha dos Porcos
Grande.
Uma cena do filme o mostraria no Catetinho, ao lado de
Juscelino, à época da construção de Brasília. Outra exibiria sua entrada na
Avenida no carro da Caprichosos de Pilares ao som do samba-enredo em sua
homenagem.
Num romance, porém, seria onde melhor poderíamos analisar as
adversidades e o sacrifício que teve que enfrentar, bem como seu compromisso
social que cresceu com o contato com pessoas simples. O objeto por excelência
do romance é a vida humana, e – recordemos – o título do último livro de
Pitanguy é Viver vale a pena.
Um capítulo seria o do pioneiro. Quando se formou em medicina,
não havia ainda a especialidade de cirurgia plástica no Brasil. Mesmo
após aprimorar-se no exterior, foi só vencendo preconceitos que conseguiu se
firmar.
Desde cedo realizava incursões em favelas, que lhe ensinaram,
segundo confessa, sobre solidariedade. Continuou atendendo na Santa Casa mesmo
após o êxito de sua Clínica Ivo Pitanguy. Quando do incêndio em Niterói do Gran
Circo Norte-Americano em 1961, deu assistência aos queimados por mais de seis meses.
Depois seguiu tratando sequelas da grande quantidade de vítimas.
Exemplo de ética e compromisso. Prova acabada de uma de suas
reflexões: “Todo fenômeno de criatividade surge de uma dificuldade.”
Em vez de fazer desfilar as centenas de famosas e famosos que
ele tratou, dou voz a uma delas, uma escritora aclamada mundialmente:
Pitanguy, “eu invejo você, eu também queria restaurar as almas através do
corpo. Não é isso que você faz?” Clarice Lispector sofreu um grave acidente em
1967 que quase levou sua vida. Sua mão parecia uma garra. Pitanguy lhe fez
sucessivas cirurgias, sem nada cobrar, segundo o relato da acadêmica Nélida
Piñon. Sem falar de que metade do rosto do acadêmico Alberto da Costa e Silva
foi restaurado pelo grande cirurgião.
Por último uma faceta a não ser esquecida: Pitanguy, o professor
na PUC e no Instituto Ivo Pitanguy. Este Instituto abrigou alunos de todos os
continentes e consolidou o Brasil como centro de excelência na difusão do
conhecimento sobre cirurgia plástica. Lemos na introdução de Viver
vale a pena: “o que realmente importa para mim é saber que fui
capaz de transmitir o que aprendi.” E para que não restasse qualquer dúvida, a
ideia vem repetida: “Dentre todas as minhas atividades, a que me dá maior
prazer, sem dúvida, é transmitir conhecimento.”
Pitanguy foi, portanto, desbravador e inventor, a exemplo do
acadêmico Santos Dumont; da estatura de predecessores no seu campo da medicina,
como outro acadêmico, Osvaldo Cruz.
Em suma, a preocupação estética perpassa a cadeira 22, nunca com
a visão estreita da busca do belo pelo belo; sempre procurando fazer do belo
instrumento da verdade
Nem todos os meus antecessores tiveram obra engajada no sentido
estrito, mas todos foram inconformistas. Seus trabalhos não perderam de vista o
compromisso social ou político, o que não deveria jamais faltar num país com
alarmantes índices de educação e de pobreza e com desigualdades sociais,
raciais e regionais extremas.
Que me permitam, antes de finalizar, prestar homenagem à minha
terra e à minha família. Tenho orgulho do solo potiguar, onde nasceram Nísia
Floresta, precursora do feminismo, e Câmara Cascudo, um dos maiores estudiosos
da cultura brasileira. Como humilde gesto simbólico de reconhecimento ao Rio
Grande do Norte, quando eu me juntar à poeira de estrelas peço que encaminhem
este fardão para a Academia Norte-rio-grandense de Letras, academia aberta à
presença feminina desde sua fundação por Câmara Cascudo em 1936.
Em Mossoró, a segunda cidade a libertar os escravos no Brasil,
aprendi desde criança a importância do compromisso com a justiça social.
Cidade palco do motim exitoso das mulheres contra o alistamento dos maridos e
filhos para a guerra do Paraguai, que levantou a bandeira do voto feminino pela
atitude audaz da professora natalense Celina Guimarães Viana, conscientizou-me
para os direitos das mulheres.
Um grão de sal do Rio Mossoró aguça o sabor dessas tradições: as
histórias da resistência a Lampião, que não alimentaram minha ficção, mas
sacudiram minha imaginação infantil. Na fotografia amarelada, meu pai, João
Almino de Souza, aos vinte e poucos anos, posava ao lado dos colegas de trincheira
com o fuzil do qual jamais saiu tiro. Ouvi relatos de minha saudosa mãe,
Natália de Queiroz e Souza, sobre a fuga num trem de mulheres para Areia
Branca.
Através dela me ligo ao sol escaldante e à secura do sertão do
Ceará; a Iracema, Ereré e à fazenda Benfica, onde nasceu e cresceu. A
Fortaleza, para onde nos levou quando, aos meus doze anos, meu pai morreu e meu
irmão mais velho, Pedro Almino, assumiu para mim o papel de um segundo pai.
Ali ouvi falar de um sonho do futuro, Brasília, meu território
ficcional demarcado no cruzamento dos brasis pela ânsia do moderno, os
processos de desmodernização e sobretudo pelas tragédias e esperanças do homem
comum.
Meu pai foi o exemplo mais sublime. Autodidata, era leitor
assíduo de história do Brasil. Sua biblioteca me apresentou os acadêmicos José
Américo de Almeida, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz, bem como um
membro incontestável da cadeira 41, Graciliano Ramos.
Tive a sorte de viver cercado de mulheres, minhas irmãs Salete,
que me ensinou a ler, Fátima, Bernadete e Maria José, esta última já falecida.
E a sorte continua. Bia Wouk, companheira de 37 anos, artista plástica de
enorme talento, bela que diariamente cria beleza e amante da literatura, sempre
me fez ver e ler mais. Nossas duas filhas, a arquiteta e artista Letícia Wouk
Almino e a escritora, tradutora e crítica de arte Elisa Wouk Almino são a fonte
de nossas mais completas alegrias.
Não citarei nominalmente os muitos amigos na Academia Brasileira
de Letras. Mas peço licença para fazer uma exceção, a do primeiro amigo entre
os que estão nesta Casa de Machado de Assis. Conheci o filósofo Sergio Paulo
Rouanet quando nós dois frequentávamos juntos outra Casa, a de Rio Branco. Foi
há mais de 43 anos, ele como Conselheiro da carreira diplomática e meu chefe na
Divisão de Política Comercial do Itamaraty. Não esquecerei jamais sua
benevolência em acolher um jovem aprendiz que com ele dialogava nas tardes do
Logaritmo Amarelo, seu sítio nos arredores de Brasília. Um privilégio os laços
de afeição e amizade com ele e com Barbara, que se estreitaram ainda mais
quando me tornei padrinho de batismo da filha do casal, Adriana, hoje também
grande amiga minha e de Bia. O pensamento iluminista e luminoso de Sergio Paulo
Rouanet continuará tanto mais atual quanto mais derrotado esteja pelo progresso
do irracionalismo, da intolerância e dos nacionalismos estreitos.
Não posso terminar sem que mais uma mulher entre neste discurso.
Agradeço ao Presidente Domício Proença Filho por ter escolhido Ana Maria
Machado para me receber. Desde que a conheci em 1982, foi crescente minha
admiração pela pessoa cativante e corajosa e pela grande escritora que é, ao
brindar um público dentro e fora do Brasil com suas bem construídas invenções
de ficcionista, assim como com um fino trabalho ensaístico sobre literatura,
leitura e outros temas culturais. Sensível aos novos tempos e magnânima com as
gerações mais jovens, Ana Maria Machado, uma das duas mulheres que presidiram
esta Casa, leva para a literatura sua solidez e coerência.
Tudo isso é ao mesmo tempo sonho e realidade demais para um
modesto ficcionista.
FONTE - ABL